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Original em CartaCapital - Newsletter Cartas para o Futuro
Armadilhas de calor no Plano Diretor da cidade de São Paulo
- Carlos Bocuhy, presidente do PROAM-instituto Brasileiro de Proteção Ambiental
Recentemente a cidade de São Paulo aprovou o Plano Diretor Estratégico 2023 (PDE 2023), que permite aumento da verticalização orientada a partir de estações de metrô e outros meios de transporte público, sem a necessidade de estudos ambientais.
Adotar apenas parâmetros de mobilidade urbana para orientar a conformação da cidade é erro crucial. Com a expansão do trabalho em casa, milhões de pessoas estão trabalhando à distância, alternativa tecnológica que representa tendência firme, mesmo que evolua para híbrida. A revolução do trabalho remoto já está remodelando os Estados Unidos - The Washington Post
Orientar desenvolvimento urbano não pode ser dissociado de qualidade ambiental de saúde pública, nem da prevenção dos efeitos nocivos e letais das alterações climáticas.
O planeta está aquecendo mais que o previsto. Suas consequências têm sido piores e mais impactantes do que se esperava, afirma o Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC). Impactos esperados para 2ºC mostram-se mais próximos dos piores cenários previstos para 4ºC.
As cidades abrigam cerca de 80% da população mundial devem se preparar. O PDE 2023 é um mau exemplo que repercute suas diretrizes equivocada para todo o Brasil, contrastando com Paris e outras metrópoles francesas, que travam intensa luta para sua adequação contra o aquecimento das mudanças climáticas. “Sofrer os efeitos das ondas de calor não é inevitável, mas uma escolha política”, afirma Maud Lelièvre – vereadora de Paris.
Paris deu início à identificação de "ilhas morfológicas": quarteirões, praças e parques, considerando o tipo de uso do solo, densidade e a altura dos edifícios para definir se essas ilhas são suscetíveis de gerar calor, agregando ainda indicadores sobre a vulnerabilidade da população, como idade e baixa renda.
Em bairros ricos, os moradores têm mais meios de deixar a cidade durante as ondas de calor, além de poder contar com meios de refrigeração artificial para seus ambientes, o que não ocorre em bairros mais modestos.
As ilhas de calor decorrentes das áreas cimentadas e sem vento pela excessiva verticalização apresentam desafio para a saúde pública. Estarão sujeitas à médias históricas maiores. Na atual conjuntura, espera-se que o aquecimento médio planetário atinja 2,5º à 2,8º até o ano de 2.100.
O efeito de aquecedor urbano das ilhas de calor não se restringe ao espaço verticalizado e impermeabilizado. Provocam defasagens de temperatura nas áreas circundantes. impedem a circulação dos ventos e acirram efeitos da poluição urbana por falta de dispersão.
“No período de verão, pode haver diferenças de 8 a 10 °C à noite, por exemplo, entre o coração de Paris e os subúrbios externos", explica Sandra Garrigou, gerente de projetos de clima e plano de adaptação do Instituto da Região de Paris”. Ressaltando a influência nociva sobre a qualidade ambiental da cidade, Garrigou afirma: “No verão, isso leva a problemas de saúde, o corpo não esfria e, portanto, não se recupera”.
Em São Paulo diferenças de até 10ºC já foram anotadas entre o centro e o cinturão periurbano envoltório. Estudos da Universidade de São Paulo, conduzidos pela geógrafa Magda Lombardo em 1985 já mapeavam esses efeitos das Ilhas de Calor. XI SBSR (inpe.br)
No verão europeu de 2022 as demandas de atendimento a uma população cada vez maior de idosos tornou-se desafio para setores da assistência social. Na França e na Itália a temperatura elevada provocou malefícios à saúde e isolou os mais vulneráveis em suas residências.
As consequências letais da onda de calor de 2003 na Europa abriu um período de reflexão política e ética em torno da vulnerabilidade dos idosos, quando 15 mil vítimas foram registradas.
Estudo de pesquisadores de institutos de saúde europeus estimam que mais de 61,6 mil pessoas morreram de causas relacionadas ao calor em 35 países do final de maio ao início de setembro de 2022. O risco já é superado em 2023, segundo afirma a Organização Meteorológica Mundial (OMM) das Nações Unidas. O mês de julho de 2023 foi o mais quente da história da civilização humana, segundo estudos da Universidade de Berkeley. https://berkeleyearth.org/july-2023-temperature-update/
Mesmo neste contexto, São Paulo, a maior metrópole da América do Sul, produz retrocessos em diretrizes de urbanismo. Intensificará as armadilhas de calor ao perseguir o conceito de cidades-paliteiro norte-americana, ao qual se referia, com intensa preocupação, o renomado geógrafo Aziz Ab’Saber.
“A adaptação das armadilhas de calor em que as nossas cidades se tornaram exige uma forte vontade de agir para ultrapassar formas obsoletas de fazer as coisas”, afirma a vereadora de Paris Maud Lelièvre”.
Obviamente tal disfuncionalidade favorece o setor especulativo. Causa estranheza tais propostas serem aprovadas pela Câmara Municipal, sem justificativas técnicas diante do contexto climático.
A redução de desigualdades para o setor habitacional, um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, assumido pela municipalidade de São Paulo, está agora relegado à regras que expandem produção imobiliária em locais de maior atratividade econômica. Os dados do censo de 2022 apontam a existência de aproximadamente 590 mil imóveis vazios na cidade de São Paulo.
Segundo o advogado Heitor Tommazini, do Movimento Defenda São Paulo, “o conceito urbanístico de adensar ao longo dos corredores de transporte foi profundamente desvirtuado na cidade de São Paulo, com ausência dos estudos ambientais e urbanísticos prévios. Foi corrompida a premissa da sustentabilidade urbano-ambiental, tema urgente em razão dos reconhecidos riscos decorrentes das mudanças climáticas já atingem todas as cidades do planeta”.
As soluções para refrescar as cidades são múltiplas e seus efeitos se somam: integrar o conforto do verão nos critérios de construção ou reforma, escolher revestimentos leves ou telhados brancos, que refletem o calor, adaptar-se aos corredores de vento (sem montanhas artificias representadas pela verticalização), construção de fontes públicas e sombreamento arbóreo. É preciso reintegrar a natureza na cidade: revestimentos impermeáveis, plantar árvores, vegetar pisos, fachadas ou telhados (com espécies resistentes adaptadas ao calor e à água disponível). Description du projet - Modelisation, Ville & Changement climatique (umr-cnrm.fr)
Um tópico importante é descobrir rios ou riachos. Essa constante defesa em nível global visa reverter a degradação dos corpos d’água. Na contramão das soluções baseadas na natureza, a Prefeitura de São Paulo anunciou, no mês de julho, “o maior programa de canalização de córregos já realizado até hoje”: a canalização de 57 córregos urbanos.
Segundo Luciana Travassos, professora de planejamento territorial da UFABC, os córregos “têm grande potencial paisagístico e podem tornar os espaços mais verdes, o que também faz com que sejam mais frescos, mais úmidos e que se diminuam as ilhas de calor urbano”. Nem canalização, nem piscinão! Por uma nova abordagem para as águas paulistanas | Nexo Políticas Públicas (nexojornal.com.br)
A Promotora de Justiça Maria Gabriela Ahualli Steinberg, da 2ª Promotoria de Justiça da Capital, ingressou em março com Ação Civil Pública para que a Prefeitura de São Paulo repare danos ambientais e as áreas de preservação permanente na canalização de Córrego Ibiporã, na Zona Oeste da Capital,
É inadmissível que, mesmo sob a ameaça das mudanças climáticas, soluções equivocadas sejam promovidas pelo poder executivo e legislativo municipal.
O PDE 2023 ganhou representação junto à Procuradoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, subscrita por dezenas de entidades, preocupadas com a periculosidade das diretrizes e a falta de controle social que cria armadilhas de calor e favorece a especulação imobiliária. Espera-se firme resposta do Ministério Público e do Judiciário.
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