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por Carlos Bocuhy_publicado em Carta Capital_
No dia 22 de março de 2024 completamos 30 anos da implementação do Dia Mundial da Água, criado durante a Conferência Rio 92 das Nações Unidas. Naquela época as preocupações focavam saneamento e proteção de ecossistemas de produção hídrica. A pauta climática saía do estado embrionário do campo de pesquisas com fortes perspectivas de construir acordos internacionais.
Passados 30 anos, estamos em plena emergência climática. O contexto mudou quase que repentinamente. Na última década a ONU impulsionou várias iniciativas sob o tema. 2013 foi escolhido como o ano de Cooperação para a Água.
Este ano o tema do Dia Mundial da Água estabelecido pela ONU foi “Água e Paz”. A preocupação é que a disputa por recursos naturais venha a se acirrar diante da escassez agravada pela mudança climática.
Mikhail Gorbachev afirmava que a disputa por recursos naturais demandaria esforços pela paz. O líder da antiga União Soviética tinha acesso a prognósticos sobre possíveis cenários futuros de disputas por água no século XXI e afirmava abertamente sua preocupação com a perda de multilateralismo colaborativo entre as nações.
Cerca de três bilhões de pessoas compartilham o total de 60% dos corpos transfronteiriços de água doce. São 276 bacias de água doce transfronteiriças e um número semelhante de aquíferos.
Gorbachev escreveu: “Em um mundo onde a escassez de água, os recursos hídricos compartilhados estão se tornando instrumento de poder, incentivando a concorrência, tanto em nível nacional como entre os países. A luta pela água está contribuindo para o aumento das tensões políticas e o agravamento dos impactos nos ecossistemas”.
Tinha razão, pois os acordos eram de difícil consolidação. A Convenção das Nações Unidas de 1977 sobre o Direito dos Usos Não-Navegáveis dos Cursos de Água Internacionais é o único tratado que rege os recursos de água doce compartilhados. Seu processo de construção demorou décadas para ser concluído. Convention on the Law of the Non-Navigational Uses of International Watercourses - Main Page (un.org)
Gorbachev defendia a elaboração de instrumentos jurídicos internacionais protetivos. Em setembro de 2009, durante a conferência da ONU sobre água e saneamento, em Nova York, Gorbachev defendeu a adoção de um tratado internacional sobre água: "A ratificação de tal convenção pelos membros das Nações Unidas daria a todos um instrumento jurídico para defender seu direito à água potável e ao saneamento e obrigaria os governos a garantir que ela seja aplicada". Gorbachev pede tratado da água; critica política nuclear dos EUA (voanews.com)
Em 28 de Julho de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução A/RES/64/292, declarou a água limpa e segura e o saneamento um direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os outros direitos humanos. Finalmente, em 17 de dezembro de 2015, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu que Água e Saneamento são Direito Humano Fundamental (Resolução 70/169 AGNU).
Durante o Fórum Alternativo Mundial da Água de 2018, instituições da sociedade civil do Brasil, Argentina e México consolidaram um Termo de Referência para Água como Direito Humano Fundamental. 139.pdf (proam.org.br) O documento aponta prioridades para o contexto sul-americano: a proteção ecossistêmica para a sustentabilidade hídrica continental da América do Sul, dos Andes ao Oceano Atlântico.
Há forte interdependência hídrica fronteiriça nas bacias Amazônica, do rio Paraná e de dezenas de corpos d’água. Porém, além das fronteiras físicas, há formidável compartilhamento atmosférico de água no continente sul-americano, um extraordinário ecossistema que garante umidade e regularidade pluviométrica continental: os rios voadores da Amazônia.
Impulsionados pelas circulações atmosféricas da cédula de Hadley, a umidade é transposta do Equador para os trópicos, em processo de contínua recirculação. Dessa forma, a umidade da Amazônia impulsionada pelo corredor atmosférico, ricocheteia nos Andes e retorna para os trópicos, abastecendo com chuvas da Amazônia à bacia do Plata, beneficiando Bolívia, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, e em maior ou menor grau todos os biomas brasileiros.
Essa bacia atmosférica transcontinental não goza de proteção legal, apesar da proposta do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), protocolada e explanada em 2018 ao Mercosul, para adoção de mecanismo protetivo nos moldes do Tratado do Aquífero Guarani.
As primeiras sinalizações políticas foram de que o Brasil não desejaria criar mecanismos que ensejassem cobranças de seus vizinhos. De outro lado, representantes dos legislativos do Uruguai e Argentina afirmaram que a defesa de um ecossistema como os rios voadores dá concretude à existência da própria área ambiental do Mercosul. Ambientalistas iniciam ofensiva para proteger 'rios voadores' da Amazônia (correiobraziliense.com.br)
Proteger a água demanda paz e colaboração, seja em aspectos nacionais ou regionais. Há notícias globais otimistas sobre cooperação hídrica. Em uma análise de 263 das 310 bacias hidrográficas internacionais do mundo, a Universidade do Oregon concluiu que “os estados são muito mais propensos a cooperar sobre a água compartilhada do que ir para a guerra.
Há variáveis a considerar. O aquecimento global agrava a escassez de água em um momento em que a demanda já está aumentando devido ao crescimento econômico e ao inchaço populacional. As mudanças climáticas podem desencadear um declínio adicional de 20% a 40% na disponibilidade de alimentos e água, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo.
O equacionamento de tensões demandará instituições fortes e democráticas. A diplomacia climática e hídrica exercerá importante papel no multilateralismo do futuro, especialmente se o agravamento climático atingir proporções de segurança alimentar. Por que a água é tão importante para a paz mundial | SIWI - Especialista líder em governança da água
Em pronunciamento no Conselho de Segurança sobre diplomacia preventiva e águas transfronteiriças, Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, disse que a demanda por água doce deve aumentar mais de 40% até a metade do século e que as tensões pelo acesso à água já estão aumentando em todas as regiões.
Portanto, a defesa de Gorbachev de lançar pilares com regramento jurídico que permita avançar em acordos pela água, baseados em justiça e paz, faz todo o sentido.
Podemos concluir que água e paz, adotado como tema pela ONU, dependerá da semeadura do multilateralismo colaborativo baseado em justiça, solidariedade, gestão democrática e diplomacia. Nesse sentido, dar vida a um instrumento jurídico internacional capaz de proteger os rios voadores da Amazônia tornaria real o exemplo de compartilhamento que nos é trazido pela própria natureza.
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