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Os negócios da China e a colonização do Brasil
Carlos Bocuhy
Presidente do PROAM - Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental


Para o apetite chinês de mercado, a América Latina, especialmente o Brasil, apresentam pouca infraestrutura para escoar minérios, produtos agrícolas e outras commodities. Os negócios da China visam acordos volumosos e vantajosos – e para obter esses insumos a baixo custo tentarão viabilizar isso com velhas formas de processo colonizador, mas com meios do século XXI: grande dimensão portuária, velocidade no transporte terrestre e práticas massivas de extrativismo. Nada aponta que por aqui as coisas serão diferentes da estratégia chinesa na África, onde estradas cortam do interior aos portos para transporte de soja, minérios e petróleo, entre outros. Nosso mau exemplo pré-existente é o porto de Açu, que aterrou o litoral fluminense com paupérrimo estudo de impacto ambiental.

Notícias recentes apontam que o Brasil entrará no século XXI como colônia da economia chinesa. No modelo de mercado darwiniano, onde prevalecem os mais fortes, o Brasil parece adaptar-se como mosca embalada pelo suave balanço da teia da aranha - sem dar valor a seu capital natural, sem clareza sobre sua supremacia comercial conferida pela riqueza de recursos naturais que se tornam cada vez mais escassos no planeta – e cada vez mais valiosos.

Nessa dança dos BRICS, bailarinos dançam no ritmo de Midas. Com um governo insensível à importância estratégia ambiental da Amazônia, empresários ávidos por lucro e em negociação com um país sedento de alimentar sua próxima e avassaladora inclusão social de 300 milhões de bocas e bolsos, a dança do renminbi com o real trará desafios incomensuráveis para a proteção ambiental e à sustentabilidade do Brasil.

Um dos primeiros desafios é a proposta do trem transcontinental, espécie de transamazônica chinesa sobre trilhos que pretende drenar a agricultura brasileira na direção Peru-Pacífico. O expresso Brasil-China abrirá novas fronteiras na floresta amazônica, onde ocorre forte aumento dos índices de desmatamento. Há outras iniciativas do apetite chinês: em parceria com a Rússia, propõe um “grande canal da Nicarágua”, para supercargueiros a um custo baixo, visando para competir - e se possível quebrar, o canal do Panamá, que está sob controle estadunidense. Como os custos do transporte sobre trilhos são muito mais elevados do que o marítimo, cortar a região Amazônica com infraestrutura que provoque indução de desmatamento, frente à atual realidade das mudanças climáticas, apresenta-se como alternativa megalômana insustentável.

Os portos brasileiros não podem atender os supercargueiros de 13.000 TEUs – e a lógica será expandir, equipar e proporcionar manutenção adequada para os portos. Para atender seu ritmo, a China precisará abrir no Brasil novas estradas, novos portos - e até aeroportos, induzindo efeitos de uma economia de escala baseada na extratividade do setor primário - com intervenções em nosso território que não serão planejados de acordo com uma política nacional para a sustentabilidade. A história demonstra que processos de colonização econômicos são vorazes – especialmente na África e América Latina – e o modelo de progresso chinês não é nenhum bom exemplo de sustentabilidade ambiental.

Os interesses logístico-comerciais dos investimentos chineses para o Brasil sinalizam com 150 bilhões de reais em infraestrutura ao longo dos próximos anos. Nesta dança dos renminbis, a velocidade para aprovação da infraestrutura estará esvaziada de acuidade de avalição ambiental, da percepção de nossa extensão territorial rica e tropical em sua forma biofísica e bioquímica – e o ritmo não diminuirá diante da vulnerabilidade de nossas populações. O marketing político do governo brasileiro sinalizará com os benefícios do aumento do PIB, mas é preciso olhar primeiro o estado ambiental da China,e também o nosso - devastados por um sistema econômico sem responsabilidade socioambiental. Para este estágio civilizatório, Enrique Leff, doutor em Economia do Desenvolvimento pela Sorbonne, aplica sabiamente o conceito de “crise de percepção - que demonstra a imaturidade e falta de preparo político-institucional.

A lógica da economia contemporânea foi analisada pelo economista Thomas Piketty, que reviu a curva de Simon Kuznets, quando este tentava demonstrar que o aumento do PIB é como “o aumento da maré que faz flutuar todos os barcos” - referindo-se aos benefícios generosos da economia em crescimento. Analisando o crescimento por período de tempo maior do que o de Kuznets, Piketty demonstrou que a geração de renda nos Estados Unidos ao longo de décadas acabou por concentrar-se em poucas mãos e não houve um benefício social adequado provido pelo crescimento do PIB. Benefícios sociais, qualidade de vida e equidade estão descolados do PIB e tornam este indicador mais adequado à barbárie. Frente à destruição ambiental decorrente da velocidade econômica desenfreada, onde passivos e externalidades não são contabilizados, o PIB não abriga percepção da sustentabilidade ambiental, de desenvolvimento adequado e muito menos da qualidade de vida.

A lógica defendida por Kuznets em sua pequena curva de tempo inicial esfacela-se diante da realidade demonstrada por Piketty, que conclui sua obra “O Capital no Século XXI” com recomendação de taxação para grandes fortunas visando canalizar recursos para benefícios sociais. Mesmo assim, ao aplicar essa recomendação à realidade, qual a capacidade de recomposição, via taxação, para que a humanidade possa recompor ecossistemas naturais vitais? As negociações do Protocolo de Quioto, que se arrastam sem sucesso por anos a fio, demonstram nossa incapacidade planetária de negociação para equacionamento de passivos ambientais - até mesmo quando estes se apresentam como ameaças potenciais à própria sobrevivência da humanidade.

Diante deste cenário da economia darwiniana contemporânea, devemos analisar com cautela o avanço mandarim. Em primeiro lugar porque os negócios da China interessam principalmente aos chineses. Quando em 2012 o primeiro-ministro chinês Wen Jiabao propôs um fórum de cooperação China-América Latina, sinalizou com 15 bilhões voltados para infraestrutura. Na época esses investimentos já atrelavam sua consecução à eficiência no escoamento de commodities para China. Neste pacotaço estão envolvidos o Eximbank e o Banco de Desenvolvimento da China, ao lado de megaempresas como China Shipping, Hanjin e China Overseas Shipping Company (COSCO).

Iniciativas de grandes investimentos para países em desenvolvimento justificam-se, na maioria das vezes, como “ajuda aos mais pobres”. Recentemente um artigo de Steve Connor, editor de ciência do britânico The Independent, aponta para 25 milhões de quilômetros de novas estradas pavimentadas até 2.050, em todo o mundo, o suficiente para circundar a Terra por 600 vezes, sendo que 90% estarão em países em desenvolvimento e sangrarão florestas tropicais virgens para novas hidrelétricas ou extração de commodities. Connor cita a pesquisa realizada por Willian Laurence, da Universidade James Cook da Austrália, que concluiu que, para cada quilometro de estrada legal, houve mais três de estradas ilegais – portanto para proteger os habitats de biodiversidade em extinção - e proteger as florestas com forte interface na regulação climática, é preciso evitar o primeiro corte e “manter as estradas fora das áreas naturais, áreas protegidas e ecossistemas raros”. Laurence afirma que a ocupação se expande como um câncer ao longo de um raio de aproximadamente 400 quilômetros. Quanto mais bordas nas florestas, maior as possibilidades de desmatamento. Bordas geram bordas - e assim o processo de devastação continua. Laurence aponta que a humanidade vive “a mais dramática expansão de infra-estrutura da história”. Diante das ameaças futuras da selvageria construtiva, o cientista manifesta preocupação com dois agentes financiadores: um brasileiro, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), este com sede em Pequim. Cita o BNDES por uma série de investimentos que desmataram áreas de floresta para construção de hidrelétricas e aberturas para vias de transmissão – e o segundo pelo potencial futuro de atuação, sem preocupação ou diretrizes de responsabilidade socioambiental e com perfil competitivo pelo espaço planetário que foi ocupado pelo Banco Mundial. O BNDES respondeu à crítica afirmando que cumpre “análises meticulosas” e o AIIB sequer se manifestou.

Essa movimentação toda está sendo sinalizada para o Brasil em momento de crise política e econômica. Será como bóia de salvação e peça de marketing do setor político e atores econômicos. A bolsa vai subir. Essa esperança, se concretizada no estado de arte de nossa institucionalização político-ambiental de crise de percepção e falta de capacidade para gerar sustentabilidade, levará à devastação e exploração desenfreada - e também a uma maior dependência econômica que é a característica de países produtores no setor primário. Há riscos de não ocorrer aumento de indústrias de transformação e falta de iniciativas no campo da inovação tecnológica, sem capacidade de gerar valor agregado e, principalmente, sem visão de sustentabilidade ambiental.

A corrida pelo PIB é perigosa, pois todos os quesitos de responsabilidade socioambiental repousarão apenas no cumprimento da normativa brasileira. A sustentabilidade para a economia é um elemento difuso e subjetivo. Dissociada da ciência, cada um tem a que lhe convém, como se fosse uma simples escova-de-dentes. Para a área ambiental brasileira, que não conta com planejamento estratégico técnico-científico construído com participação social e transparência, a lacuna de políticas públicas eficazes ficará circunscrita ao superficial licenciamento ambiental, com base num sistema ineficiente de avaliação de impacto ambiental, com a habitual figura de EIA-RIMAs contratados pelos empreendedores, sem direito ao contraditório, avaliado de forma acientífica, sem participação das academias e com precária participação social por um sistema estatal de meio ambiente sucateado e quase sempre refém de interesses políticos - e contando com a última e pouco democrática palavra dos conselhos ambientais, sem paridade, onde a maioria dos assentos é ocupada por interesses políticos e corporativos. Via de regra, se judicializados, os processos serão defendidos pelos órgãos ambientais alegando regularidade no atendimento das normas e submetidos a ampla participação social. Então perguntamos: em que dados se baseiam as análises meticulosa alegadas pelo BNDES? Em que dados e indicadores se baseará a política agressiva de investimento dos bancos chineses no Brasil? A resposta não será outra senão a de que os processos contarão com absoluto respeito aos soberanos dispositivos legais do Brasil - mesmo quando é clara a vigência de um sistema superficial e cheio de distorções políticas. Os negócios da China respeitarão todos os nossos “dispositivos legais e procedimentos de licenciamento ambiental” – que balizarão e diplomarão a responsabilidade socioambiental dos agentes financiadores...

Quando a economia sinaliza com mais PIB, seu parceiro natural é o governo – e vice-versa, pois a realização de mandatos políticos está histórica e erroneamente atrelada a este indicador - que não mede qualidade de vida nem sustentabilidade. Se aplicado corretamente e incluir a perda de capital natural, o PIB, em nosso sistema civilizatório, irá apresentar resultado negativo, especialmente no caso de contabilizar passivos de empreendimentos que, por exemplo, podem dar continuidade à devastação da floresta amazônica. Se estivéssemos diante de uma negociação honesta e de respeito ao patrimônio ambiental público do Brasil, nada mais precioso seria, aos olhos de agentes financiadores social e ambientalmente responsáveis, do que a manutenção do grande driver amazônico que proporciona transposição de umidade para manter aproximadamente 40% das chuvas no centro e sudeste do continente – e que alimenta o magnífico ecossistema e a biodiversidade do Pantanal.

No cenário atual de aquecimento global, os negócios da China no Brasil, com perspectivas de intenso extrativismo colonial, deveriam ser objeto de uma avaliação ambiental estratégica, já que se apresentam com dimensões de nova política pública de desenvolvimento nacional – de forma a avaliar impactos positivos e negativos das “oportunidades de mercado”, incluindo compreensão sobre sinergia e cumulatividade de suas interações com o meio ambiente. Nosso momento civilizatório do Antropoceno, termo cunhado diante da atual capacidade humana de alterar as funções vitais do planeta, não permite mais a superficialidade econômica de “externalidades” que não sejam obrigatoriamente “internalizadas”, nem permitem lacunas na avaliação ambiental de projetos justificados singelamente por “aumento do PIB”. Estamos no fim da era da inocência e não há justificativa para não se aplicar indicadores reais das intervenções previstas. Neste contexto, o governo brasileiro não tem a prerrogativa de sacramentar os negócios da China no Brasil usando discricionariamente sua pena, sem considerar se estará ou não sacrificando bens de valor incomensurável - que pertencem às atuais e futuras gerações.

Os negócios da China no Brasil não devem estar dissociados da ciência e do real sentido das boas conquistas sociais expressas em nossa legislação. Para o governo e a economia, a responsabilidade socioambiental deve ser observada como o ato zeloso de dirigir este imenso Brasil rumo ao futuro. Os mecanismos que o governo deve respeitar estão explicitados em nossa constituição – e nos princípios estabelecidos na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente - é que com este espírito que os negócios da China poderão investir no Brasil.

Mas e sobre o futuro? Para onde e com que nível de segurança devemos ir? Essa bússola da sustentabilidade, que ainda é incompreensivelmente uma grande lacuna, está em nossa capacidade de avaliar, de forma científica, o uso do capital natural, a sinergia e cumulatividade dos impactos, os benefícios à economia com indicadores menos bárbaros que o PIB - e que mensurem a melhoria da qualidade de vida da população. O futuro desejável repousa na capacidade de romper com a atual crise de percepção, observando com segurança os limites das alterações aceitáveis de nossa bio-realidade territorial e planetária.