Contato
O Instituto Imprensa Acontecimentos Notícias Documentos Fotos Clippings
     


PL 3729/2004: depois do bode na sala, mais uma ameaça ao licenciamento ambiental
PL 3729/2004: depois do bode na sala, mais uma ameaça de retrocesso para o licenciamento ambiental

Carlos Bocuhy*

Com o enfraquecimento das propostas da PEC 65/2012 e PLS 654/2015 no Senado Federal, por forte reação da Sociedade Brasileira, incluindo o Ministério Público - e do bombardeio contra a proposta do Conama com um manifesto subscrito por 343 ONGs, podemos dizer que o bode começa a ser empurrado para fora da sala. Mas na esteira do bode acaba de entrar o PL 3729/2004, que inclusive conta com apoio do Governo Federal.

A leitura do artigo 3º do Projeto de Lei 3729/2004, bem como as suas próprias justificativas, aparentemente repletas de boas intenções, poderiam, a princípio, dar a impressão para os menos avisados de que seria uma alternativa de aprimoramento da normativa do licenciamento ambiental.

Senão, vejamos:
Art. 3º O licenciamento ambiental visa à sustentabilidade, a partir da compatibilização do desenvolvimento econômico e social com a manutenção ou melhoria da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico.

Como se não bastasse a PEC 65/2012, e o PLS 654/15, o PL 3729/2004, que tramita na Câmara Federal, na versão oriunda da Comissão de Meio Ambiente, é mais um desastre que atenta contra os princípios mais elementares que norteiam o direito ambiental brasileiro. É mais uma espada sobre as nossas cabeças, que agora, se for objeto de comparações simplórias com as demais iniciativas absurdas e nefastas em tramitação, tende a se revestir, falaciosamente, de “uma plataforma de razoabilidade”.
Mas na verdade o Projeto de Lei 3729/2004 promove a subversão e adulteração de duas das mais importantes definições contidas na Política Nacional de Meio Ambiente: “degradação da qualidade ambiental” e “poluição” (artigo 3º da Lei 6938/81), conforme destaques abaixo:

Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;
II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente;
III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;

No PL 3729 estas definições são bem distintas:
V – degradação do meio ambiente: alteração adversa das características físicas, químicas, biológicas ou socioeconômicas do meio ambiente causada por empreendimento;
XIV – poluição: a degradação das águas, do solo ou do ar resultante da emissão de matéria ou energia pelas atividades humanas;
A simples comparação das definições evidencia o empobrecimento e a deturpação conceitual promovida. A definição deturpada de “degradação do meio ambiente” contida no PL conflita com os termos da Política Nacional do Meio Ambiente, prejudicando, inclusive, toda a estruturação do arcabouço do universo da reparação de danos ambientais.

Além disso, implica em que toda situação de “adversidade sócio-econômica”, atribuída às conseqüências de um empreendimento, sob a ótica parcial de interesses privados ou públicos específicos (por exemplo, a sua não realização), seja equivocadamente considerada também como degradação do meio ambiente, potencializando distorções. Já o conceito de poluição se torna bem mais limitado e menos abrangente.

Mas há outros descompassos nas definições.

A definição de “impacto ambiental” do PL conflita com o mesmo conceito estabelecido conforme a Resolução Conama 01/86:

Artigo 1º - Para efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam:
I - a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
II - as atividades sociais e econômicas;
III - a biota;
IV - as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente;
V - a qualidade dos recursos ambientais.

O conceito de “impacto ambiental” fixado no PL é inadequado e se assemelha a uma síntese do que seria o significado das conclusões de uma avaliação de viabilidade ambiental dos empreendimentos, conforme segue:

XI – impacto ambiental: conjunto de efeitos ambientais adversos e benéficos causados por um empreendimento ou conjunto de empreendimentos, considerando o funcionamento dos ecossistemas e a qualidade dos recursos ambientais, a biodiversidade, as atividades sociais e econômicas, a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
Além da questão das definições inadequadas e conflitantes com referências conceituais já existentes em normas ambientais vigentes há décadas do país, o PL inova também ao abrir um espaço de consolidação indevida de empreendimentos ambientalmente irregulares, o que se observa em dispositivos como o artigo 1º e 7º:
Art. 7º Cabe à autoridade licenciadora integrante do Sisnama emitir os seguintes tipos de licença, nos termos desta Lei:
IV – Licença de Operação Corretiva (LOC): regulariza empreendimento em desacordo com a legislação, por meio da fixação de condicionantes que viabilizem sua continuidade e conformidade com as normas ambientais.

Nas premissas iniciais do PL (parágrafo 2º do art. 1º) consta que as resoluções do órgão consultivo e deliberativo do Sisnama que se refiram a licenciamento ambiental, editadas no uso de suas atribuições normativas estabelecidas pelo art. 8º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, são aplicáveis naquilo que não contrariarem esta Lei, o que representa nada mais do que uma revogação tácita de normas do Conama que se relacionem ao tema.

Permeando todo PL é muito visível, em vários dispositivos, a excessiva discricionariedade do órgão licenciador na dispensa de etapas e exigências de estudos técnicos ou no sentido de sua simplificação com adoção de fundamentação precária, e que não garante compromisso com a eficácia do instrumento (artigos 5º , 8º, 9º , 15º , 19º, entre outros).

Há vários dispositivos que abrem espaço para o licenciamento simplificado, e inclusive com base nesta definição, e há muitas brechas para o órgão ambiental arbitrar a condução do licenciamento, sem critérios transparentes, o que faz com que os estudos e avaliações de impacto ambiental tendam a perder qualidade e deixem de cumprir as suas funções básicas.

Vários dispositivos, que em parte se relacionam com as matrizes anexas ao PL, estão prejudicadas em função da inadequação dos critérios adotados. Os critérios (anexos do PL) se mostram insuficientes, impróprios e passíveis de muita subjetividade (impacto ambiental esperado da categoria do empreendimento: baixo, médio e alto; e grau de resiliência da área: frágil; baixa, média e alta), sendo extremamente questionáveis.

A avaliação com base nos mesmos tenderá à generalização, superficialidade e distorção, além de não considerar devidamente, como premissa, a avaliação dos impactos cumulativos e sinérgicos, sendo importante lembrar que pequenos impactos de empreendimentos, dependendo do contexto em análise, podem apresentar uma grande relevância e significado do ponto de vista ambiental, especialmente pelo seu efeito conjunto no território.

O PL 3729/2004 promove amplamente o licenciamento simplificado, com substituição do EIA por estudos de menor complexidade e permite a eliminação de etapas do licenciamento. No conjunto, como já menciondo, observa-se que o PL 3729/2004 confere um poder desproporcional de decisão ao órgão licenciador, sem que haja ampliação concomitante dos mecanismos de controle social, que embora destacados no art. 4º , na prática, não são devidamente contemplados na proposta.

Outra questão extremamente grave contida no PL é a possibilidade de dispensa de licenciamento ambiental, nos termos dos artigos 24 e 25 (ver abaixo), o que tende a ocorrer de forma precipitada e desprovida da fundamentação cabível, em detrimento da coletividade, desconsiderando, mais uma vez, a necessidade de se prever e efetuar a prévia avaliação de impactos cumulativos e sinérgicos:

Art. 24. O órgão consultivo e deliberativo do Sisnama deve definir tipologias de empreendimentos que estão dispensados do licenciamento ambiental promovido perante a autoridade licenciadora federal, em razão de seu baixo potencial de impacto ambiental, considerando sua região de implantação.
Art. 25. Os conselhos estaduais de meio ambiente devem definir tipologias de empreendimentos que estão dispensados do licenciamento ambiental promovido perante a autoridade licenciadora estadual ou municipal, em razão de seu baixo potencial de impacto ambiental, considerando sua região de implantação.

Em relação ao instrumento da AAE (Avaliação Ambiental Estratégica), entende-se que o mesmo deveria ser devidamente regulamentado em norma própria, e não ensejar alterações indevidas na Lei 6938/81 (artigo 54). A AAE é citada em normas brasileiras como a Política Nacional de Mudanças Climáticas. Por outro lado, a AAE não está devidamente regulamentada. A Avaliação Ambiental Estratégica e a Avaliação Ambiental Integrada não substituem o EIA-RIMA. O EIA - RIMA (Resolução CONAMA 01/86) é o instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente com amparo legal para permitir a efetiva avaliação da viabilidade ambiental de empreendimentos. Por seu turno, a realização da AAE ou da AAI não deve induzir à elaboração de licenciamento simplificado (artigo 20).

No que se refere ao próprio conteúdo do EIA, o artigo 28, a seguir, mostra as sorrateiras alterações impróprias fixadas em prejuízo da instrução (limitam e prejudicam a instrução), modificando o alcance e forma de tratamento das matérias em relação ao que estabelece à Resolução Conama 01/86 (em claro retrocesso). Exemplos estão grifados abaixo:
Art. 28. O EIA é elaborado de forma a contemplar:
I – a concepção e as características principais do empreendimento e a identificação dos aspectos ambientais associados aos processos, serviços e produtos que o compõem, assim como a identificação e a análise das principais alternativas tecnológicas e locacionais, quando couber, confrontando-as entre si e com a hipótese de sua não implantação;
II – a definição dos limites geográficos da área diretamente afetada pelo empreendimento e de sua área de influência;

Quanto ao Termo de Referência, que é o alicerce do EIA-RIMA, conforme se observa no artigo 29 abaixo, o PL é omisso, restritivo e insuficiente, especialmente no que se refere ao caráter participativo que deve ser imprimido à esta etapa, além de se vincular aos critérios equivocados e insuficientes que integram os anexos da proposta de norma:
Art. 29. O conteúdo do EIA de cada empreendimento é definido em Termo de Referência (TR) expedido pela autoridade licenciadora, com base em diretrizes por tipologia de empreendimento estabelecidas em resolução do órgão consultivo e deliberativo do Sisnama.
§ 1º O TR é elaborado considerando a dimensão e o potencial de degradação do empreendimento, combinados com o grau de resiliência da área na qual se pretende inseri-lo, observadas as matrizes constantes no Anexo I desta Lei.
§ 2º A inexistência da resolução prevista no caput deste artigo não constitui condição impeditiva da expedição do TR pela autoridade licenciadora, observada, em todos os casos, a combinação de aspectos referida no § 1º deste artigo.

Por outro lado, é preocupante, e carece de detalhamento e avaliação, em relação aos estudos ambientais, que seja possível a realização dos mesmos, em conjunto por diferentes empreendimentos, que seriam dispensados de estudos específicos, ensejando a emissão de LP única (art. 33); e também, que no caso de implantação de empreendimento ou atividade nas proximidades de empreendimento já licenciado, o empreendedor poderá solicitar o aproveitamento do diagnóstico dos meios físico, biótico e socioeconômico, independentemente da titularidade do licenciamento ambiental (art.34).

Também no que se refere à publicidade, a realização de audiências públicas e aos prazos estabelecidos para os licenciamentos, há clara tendência de limitação e prejuízo a sua devida instrução, como se constata em dispositivos tais como os artigos 38, 41 e 44.

O artigo 49 também inova, em seu parágrafo 1º, de forma questionável, do ponto de vista ambiental, em fixar como prioritários, para fins de atendimento pelo órgão licenciador, os empreendimentos vinculados a programas governamentais de geração de empregos. E para coroar a precariedade e a impunidade, o artigo 58, em seu item II, estabelece a revogação descabida do parágrafo único do art. 67 da Lei nº 9.605, de 12 de 1998 (sanções a funcionário público que autoriza indevidamente um empreendimento sem respeitar as normas ambientais). Fica evidente que o PL em questão é um desserviço à sociedade, a gestão ambiental responsável e à democracia participativa.

Por fim, diante do exposto, sem a pretensão de esgotar o tema, a leitura crítica que realizamos permite reafirmar com veemência as graves falhas do PL 3729/2004 já apontadas em Nota Técnica do MP de São Paulo, a qual também consta no site do PROAM http://www.proam.org.br/2008/imagens/documentos/103.pdf , conforme segue:
(a) fixação de prazos exíguos e fatais para análises técnicas de alta complexidade;
(b) previsão de hipóteses legais que autorizam a supressão de uma ou mais fases do procedimento de licenciamento, mesmo para projetos que envolvam atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente;
(c) possibilidade de dispensa de documentos técnicos essenciais (EIA/RIMA, mesmo para atividades potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental) e limitação na fixação de condicionantes nas licenças ambientais;
(d) tratamento insuficiente para o tema da cumulatividade e sinergia de impactos para a uma dada região, permitindo que vários projetos similares sejam analisados separadamente, ignorando-se o conjunto dos impactos negativos;
(e) excessiva ampliação da discricionariedade do órgão licenciador na dispensa de etapas e exigências de estudos técnicos (simplificação sem garantir eficácia).
(f) redução da participação e interferência de demais órgãos técnicos, sociedade civil e comunidade científica no procedimento de licenciamento.

A aprovação do PL nos termos atuais ameaça gravemente a estruturação conceitual da Política Nacional do Meio Ambiente, e por esta razão conflita com os comandos do art. 225 da Constituição Federal.

*Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental e conselheiro do Conama-Conselho Nacional do Meio Ambiente